quinta-feira, 10 de setembro de 2009

LÁ VEM A CIDADE


Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá,
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...


A poesia fala por si mesmo. Tem o poder da síntese e de captar aquilo que, muitas vezes, demanda tempo e muitas palavras para ser formulado em teorias e estudos empíricos. Lenine e Bráulio Tavares são poetas-compositores visionários com licença poética para traduzir a realidade social e suas contradições em frases poético-musicais. “Lá Vem a Cidade”, música do último CD de Lenine, Labiata, descreve em versos uma visão delirante do caos urbano.

Vi a cidade passando,
Rugindo, através de mim...
Cada vida
Era uma batida
Dum imenso tamborim.
Eu era o lugar, ela era a viagem
Cada um era real, cada outro era miragem.
Uma cidade imaginária, como as cidades invisíveis de Calvino, da qual o poeta foge, instalando-se em seu castelo situado no alto de uma serra, de onde vê a cidade se alastrando e chegando pouco a pouco

Eu era transparente e era gigante
Eu era a cruza entre o sempre e o instante.
Letras misturadas com metal
E a cidade crescia como um animal,
Em estruturas postiças,
Sobre areias movediças,
Sobre ossadas e carniças,
Sobre o pântano que cobre o sambaqui...
Sobre o país ancestral
Sobre a folha do jornal
Sobre a cama de casal onde eu nasci.


Como um bicho ameaçador, a cidade amedronta, acua, mas também seduz e encanta. Sua grandeza atrai. Se traduz em beleza e caos. As teorias confirmam: riqueza se acumula onde já há riqueza e gente. E riqueza e gente atraem mais gente e riqueza. Mas como já poetizou Caetano, a força da grana ergue e destrói coisas belas.

A cidade
Passou me lavrando todo...
A cidade
Chegou me passou no rodo...
Passou como um caminhão
Passa através de um segundo
Quando desce a ladeira na banguela...
Veio com luzes e sons.
Com sonhos maus, sonhos bons.
Falava como um camões,
Gemia feito pantera.
Ela era...
Bela... fera.


Sonhos maus, sonhos bons. As pessoas migram do campo para a cidade e de cidades pequenas para cidades maiores em busca de seus sonhos e oportunidades. Mas se a cidade a alguns oferece emprego, consumo, educação, lazer e melhoria de vida, a muitos só oferece vida dura, desemprego ou sub-emprego, más condições de moradia, violência, frustação e solidão.

Desta cidade um dia só restará
O vento que levou meu verso embora...
Mas onde ele estiver, ela estará:
Um será o mundo de dentro,
Será o outro o mundo de fora.

Vi a cidade fervendo
Na emulsão da retina.
Crepitar de vida ardendo,
Mariposa e lamparina.
A cidade ensurdecia,
Rugia como um incêndio,
Era veneno e vacina...

O crescimento urbano, especialmente nos países mais pobres, se é sinal de maior dinamismo econômico, também vem acompanhado de problemas de difícil gestão. Metade da população do planeta já é urbana e estudos confirmam que é nos países pobres que a urbanização está ocorrendo de forma acelerada sem que os governos tenham condições de dar condições de vida digna à população.

Eu pairava no ar, e olhava a cidade
Passando veloz lá embaixo de mim.
Eram dez milhões de mentes,
Dez milhões de inconscientes,
Se misturam... viram entes...
Os quais conduzem as gentes
Como se fossem correntes
Dum rio que não tem fim?


Em 2050 haverá 3 bilhões de pessoas pobres no mundo vivendo em condições precárias nas cidades. Isto afetará ainda mais os problemas habitacionais, os serviços de saúde, educação e os transportes. A violência urbana aumentará e o meio ambiente será mais impactado. Os mais pobres serão mais afetados pelas enchentes, pelas secas e pelo frio intenso. Todos serão afetados pelo aquecimento global.

Esse ruído
São os séculos pingando...
E as cidades crescendo e se cruzando
Como círculos na água da lagoa.
E eu vi nuvens de poeira
E vi uma tribo inteira
Fugindo em toda carreira
Pisando em roça e fogueira
Ganhando uma ribanceira...
E a cidade vinha vindo,
A cidade vinha andando,
A cidade intumescendo:
Crescendo... se aproximando.


Lá vem a cidade e não há como detê-la. Como círculos na água da lagoa, as cidades se expandem e se adensam. Maior consumo de matérias primas e energia, maior emissão de poluentes, maior a temperatura da Terra. E enquanto as calotas polares derretem e o clima enloquece, as cidades crescem e são tomadas pelas águas e arrassadas pelos maremotos e terremotos. O sertão vira mar, o mar vira sertão. Como em Sodoma e Gomorra, aqueles que fogem se refugiam nos lugares altos e não podem olhar para trás sob pena de virarem estátuas de sal.

Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá,
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...

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