sexta-feira, 17 de julho de 2020

DENSIDADE NA CIDADE PÓS PANDEMIA.

A associação entre densidade urbana e risco de contaminação na pandemia resultaria, segundo alguns analistas, na retomada da tendência à maior suburbanização e dispersão urbana e ao retrocesso no estímulo às cidades mais compactas e densas. Esse tipo de análise que revive ideias sanitaristas do final do Sec. XIX e início do Sec. XX, contudo, tem sido contestada por outro grupo de analistas do processo urbano.
Sennett (2020) argumenta que a pandemia desafia os urbanistas a repensar “novas configurações de densidade que permitiriam às pessoas se comunicar, ver seus vizinhos, participar da vida urbana, mesmo que elas devam temporariamente se manter distantes umas das outras”. Admite, porém, que a densidade é a lógica das cidades, pois é pela concentração de atividades e pessoas que um mundo cada vez mais urbanizado se desenvolve. Além disso, aponta para a contradição entre a desejada “cidade saudável”, de padrão europeu, na qual os moradores poderiam se deslocar “em quinze minutos” a pé ou de bicicleta para pequenos polos densos de atividades e a cidade desigual dos países pobres em desenvolvimento social, na qual os trabalhadores são obrigados a se deslocar para suas moradias de periferia em transporte de massa superlotados.
Lapouge (2020) relaciona a rápida propagação do vírus às grandes cidades e seus “enormes edifícios sujos e degradantes nos quais proliferam os traficantes de drogas, os bandidos, os que põem fogo nos carros, as crianças tristes”. Ele defende e enaltece os ideais sanitaristas, o modelo da cidade jardim, bem como esteriotipiza e demoniza as metrópoles como locais propícios às pandemias. Sua visão se inspira em ideais que remontam aos socialistas utópicos (Fourier, Owen, Considerant) e que resultaram em modelos de cidade assépticas, mas também pouco urbanas, pouco humanas e autoritárias.
Já Rolnik (2020) alerta para uma importante diferenciação que deve ser feita entre densidade construtiva e densidade domiciliar. A primeira relaciona-se com a quantidade de metros quadrados construídos por unidade de terreno e é mais alta, em geral, em áreas que concentram edifícios altos e altas taxas de construção. Já a densidade domiciliar é a quantidade de pessoas concentradas em um mesmo domicílio, que se associa diretamente à densidade demográfica, mas tem consequências muito diferentes quando se analisa a propagação de epidemias. Assim, áreas urbanas com grande quantidade de arranha-céus, inclusive residenciais, como Manhattan, tiveram menor incidência da Covid-19 do que em bairros periféricos, com edifícios mais baixos, mas altas taxas de densidade domiciliar (mais gente morando em uma mesma residência, o chamado “overcrowding”) e demográfica na cidade de Nova York.
A associação entre densidade e propagação de epidemias também deve ser melhor analisada quando se constata que em cidades densamente ocupadas, como Hong Kong, Seul e Singapura, houve melhor controle na propagação da Covid-19 do que em cidades pequenas e pouco densas, como algumas nos estados da Georgia e Louisiana no EUA, por exemplo (Kling, 2020).
O argumento de que as cidades devem ter mais áreas verdes e menos edifícios também carece de melhor fundamentação e remonta aos defensores do “embelezamento urbano” (City Beautiful) que a partir das reformas do Barão de Haussmann em Paris (1851-1870) promoveram reformas urbanas mundo afora que resultam em destruição de porções centrais das cidades para o alargamento de vias e criação de boulevares e grandes parques urbanos. Essas grandes reformas urbanas, contudo, não resultaram em uma cidade mais saudável, no seu conjunto, e nem resolveram os problemas da pobreza e insalubridade, mas os transferiram para as periferias pobres das cidades.
Não creio que deve haver uma oposição entre maior densidade ou mais espaços verdes, como parques. As duas coisas podem e devem conviver bem. O sanitarismo foi importante por promover saneamento e aumento do percentual de áreas verdes nas cidades e a atenção ao conforto ambiental (ventilação, iluminação) nas moradias. Mas existem cada vez mais evidências que cidades mais densas e diversas são melhores lugares para viver e mais preparadas para enfrentar os desafios urbanos, entre os quais se adiciona agora a convivência com as pandemias.
Olhando pela vertente econômica, o maior aproveitamento construtivo dos terrenos centrais e a redução progressiva da área construída dos espaços residenciais, que resultam em maior densidades, são consequências do aumento do valor da terra urbana. Portanto, movimentos no sentido de menor densificação das cidades encontrariam resistências de empreendedores imobiliários, embora a expansão urbana dispersa também faça parte das estratégias para o aumento progressivo da renda urbana da terra.
Já pela ótica do consumidor, querer viver em áreas centrais e em espaços cada vez menores com uso mais intenso dos espaços públicos são consequências da redução progressiva das taxas de crescimento demográfico e da tendência de morar sozinho ou em casal, no máximo. Para essa classe de cidadão interessa uma cidade mais densa e com maior vitalidade cultural. Contudo, a ocorrência de situações de confinamento mais frequentes, obrigando a permanência prolongada em espaços exíguos, e a exigência de distanciamento social nos espaços públicos devem trazer novos elementos de reorientação das preferências imobiliárias com consequências em cadeia na dinâmica urbana.

KLING, Samuel. Is the City Itself the Problem? Publicado em 20/04/2020 no portal CityLab. Disponível em https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-04-20/the-long-history-of-demonizing-urban-density
LAPOUGE, Gilles. Reinventar as cidades. Publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 15/5/20 no portal Terra. Disponível em https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/saude/reinventar-as-cidades,10b52d71fc75763d18452549f90f4dffb4t7ykmf.html
ROLNIK, Raquel. Como a densidade das cidades se relaciona com a difusão da pandemia? Publicado em 25/06/20 no portal “A Cidade é nossa”. Disponível em https://raquelrolnik.blogosfera.uol.com.br/2020/06/25/como-a-densidade-das-cidades-se-relaciona-a-pandemia/?
SENNETT, Richard. As cidades na pandemia. Publicado originalmente em 24/03/2020 no portal Newcities.org com o título “The State of Exception Becomes the Norm”. Versão traduzida para o português disponível em http://agbcampinas.com.br/site/2020/richard-sennett-as-cidades-na-pandemia/
Nota: essa breve reflexão foi inspirada pela conversa entre amigos do Grupo de Estudos “Construção Geográfica do Espaço”, coordenado pelo Prof. Aldo Paviani, da qual participaram também Alexandre Brandão, Benny Schvasberg e Sergio Magno Souza
Sérgio Jatobá
Luiz Philippe Torelly, Valéria Nunes e outras 11 pessoas
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