sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Novos Bairros Além das Portas de Paris

Resumo (Abstract): A cidade “luz” abriga periferias pobres, degradadas e pouco “iluminadas”. O Projeto “Grand Paris” tem promovido transformações urbanas em algumas dessas áreas periféricas (Clichy Batignolles), enquanto outras ainda permanecem marginalizadas (Saint-Ouen). The “city of lights" has “darkness” poor and degraded peripheral neighborhoods. The project "Grand Paris" is promoting urban transformations in some of these outlying areas (Clichy Batignolles), while others remains marginalized (Saint- Ouen). La ciudad de las luces tiene barrios pobres, degradados y poco “iluminados”. El proyecto "Grand Paris" ha promovido transformaciones urbanas en algunas de estas áreas periféricas (Clichy Batignolles ) , mientras otras todavía siguen marginadas (Saint- Ouen).
Há mais de uma Paris, além da cidade luz que os cartões postais mostram. Em setembro de 2015, visitei pelo menos três “cidades” diferentes no perímetro da “Grande Paris”. A primeira foi a Paris dos arrondissements centrais, de qualidades urbanas já bem conhecidas e sobre a qual não caberão maiores comentários nesse texto. As outras duas estão localizadas na Paris menos "iluminada", na qual poucos visitantes e mesmo parisienses se aventuram, e são bem diferentes da Paris turística. É a dos bairros periféricos, situados para além das “Portes” de Paris, fora do anel viário definido pelo traçado das antigas muralhas da cidade.
Fui a um desses bairros, Saint-Ouen, em busca do famoso Mercado das Pulgas, local de comércio de antiguidades. Saint-Ouen, que pertence ao departamento Seine-Saint-Denis, está localizado na periferia norte de Paris, nos limites do 17º e do 18º arrondissements. É a maior concentração proporcional de imigrantes em uma localidade francesa. Tem a mais elevada taxa de mortalidade infantil (5,7%), a população mais jovem (14% entre 14 e 24 anos) e uma das mais altas taxas de desemprego na França, que chegou a 43% entre os jovens em 2011(1). Nas suas ruas sujas e sem glamour não se vê brasseires nem boutiques luxuosas. É um local inseguro, com ocorrências de muitos roubos, tráfico de drogas, crimes e a tipologia urbana e arquitetônica não é a da Paris do Champs Elyseès, do Marais ou do Quartier Latin. A predominância é de conjuntos habitacionais populares construídos nas décadas de 1960 e 1970. Em suma, uma Paris com cara de terceiro mundo, onde os descolados mercados de antiguidades são enclaves cult, escondidos em meio a centenas de barracas e lojas populares que mais parecem a região do Saara no Rio de Janeiro.
Mas há uma nova periferia, bem diversa, nascendo não muito longe de Saint-Ouen. Trata-se de Clichy Batignolles, um projeto de renovação urbana em implantação no 17º arrondissement (área noroeste da Grande Paris) com previsão de construção de 500 mil metros quadrados no entorno de um parque urbano com 10 hectares: o Parque Martin Luther King, com dois terços da sua área já concluídos em 2015. O novo bairro em implantação é vendido como o coração de um eco-distrito de uso misto que combina área residencial acessível, lojas e escritórios, com responsabilidade social e ambiental. O complexo terá 2 estações de metrô, a serem construídas na extensão da linha 14 e uma linha de tramway. Quando completo, em 2019, abrigará 3400 unidades residenciais, parte delas com destinação social para estudantes, idosos, jovens trabalhadores, como promete o release do empreendimento, e previsão final de 6500 habitantes. O gabarito da maior parte dos edifícios já construídos é de 8 a 10 pavimentos, mas está prevista a construção de um arranha-céu com 160 metros de altura com assinatura de Renzo Piano e outros prédios com mais de 50 metros de altura (aproximadamente 17/18 pavimentos).
Clichy Batignolles está em vias de obter o certificado de bairro ecológico do governo francês, em função da previsão de projetos de economia energética, eletricidade produzida por painéis solares, uso de energias renováveis, coleta de lixo automatizada à vácuo e projetos de desenvolvimento de biodoversidade. Faz parte de uma intervenção maior, o projeto “Grand Paris”, que inclui revitalização, melhorias urbanas e desenvolvimento de novas centralidades em áreas periféricas da capital francesa, inclusive Saint-Ouen.
Clichy Batignolles tem pouco em comum com Saint-Ouen, além do fato de serem periferias localizadas em um mesmo eixo de intervenção urbana. As diferenças vão da tipologia arquitetônica ao perfil dos moradores. Em Clichy Batignolles quase não se vê imigrantes, mas uma jovem classe média francesa que busca moradia com preços mais acessíveis do que os das áreas centrais, mas com qualidade urbana diferenciada. Na minha visita, em uma luminosa tarde de domingo, vi muita gente jovem, crianças e adolescentes usufruindo de lazer, esportes e atividades culturais no Parque. Em suma, um ideal de área residencial qualificada, habitada por gente que parecia feliz, empregada e sem grandes sacrifícios para sobreviver.
Clichy Batignolles e Saint-Ouen espelham realidades sociais diferentes e uma situação de desigualdade, que embora muito comum nos países em desenvolvimento, era bem mais rara em uma Europa economicamente e socialmente mais igualitária. Mas a Europa não é a mesma depois da crise de 2008 e do recebimento crescente de imigrantes e refugiados das regiões mais pobres do mundo. Nas intervenções urbanas também se notam posturas diferenciadas. Em Saint-Ouen projetos de requalificação urbana podem esbarrar em dificuldades típicas de locais submetidos a progressiva degradação física e social, com o risco de que as melhorias tenham como efeito colateral os criticados processos de gentrificação. O projeto de Clichy Batignolles, por sua vez, ocorre em uma área desativada de uma estação ferroviária, não implicando, em um primeiro momento, em desapropriações e remoção de moradores locais. Evidente que com essas características é bem mais interessante para o mercado imobiliário.
Na verdade, Clichy Batignolles é um típico “écoquartier” ou um bairro ecológico, modelo urbanístico que surge na Europa no início dos anos 2000 buscando inserir o conceito de “cidade sustentável” nos empreendimentos imobiliários. Exemplos desse tipo de bairro são Hammarby, em Estocolmo; Bo01 (Vastra Hamnen) em Malmo, Suécia; Vesterbro em Copenhagen, Dinamarca e mais recentemente o East Village em Londres, construído inicialmente para ser a vila olímpica dos jogos de 2012. É um empreendimento do tipo “ganha-ganha” que, à princípio, gera benefícios para todas as partes envolvidas: os empreendedores, que obtém terrenos a custos mais baixos do que nas áreas centrais ; o governo, que aumenta sua receita via impostos ou captura de mais valia urbana e ainda se promove politicamente; os clientes, que adquirem moradia de qualidade a preços mais acessíveis e com grande potencial de valorização imobiliária e mesmo a comunidade do entorno, que ganha espaços públicos de qualidade em substituição as áreas degradadas e sem uso de antes.
Contudo, essa equação positiva não inclui populações marginalizadas, como as de Saint-Ouen, que continuam pagando o preço da origem pobre e permanecem como pobres no país rico. Para Ribeiro (2) as mesmas cidades que promovem os ecobairros, festejados midiaticamente como empreendimentos sustentáveis e precursores de um novo urbanismo, também têm visto crescer exponencialmente o desemprego e a pobreza, como Paris. Para os habitantes de Saint-Ouen ter saído da periferia do mundo para tentar um lugar ao sol na cidade dos privilegiados ainda não resultou em melhorias efetivas no seu padrão de vida e a periferia urbana onde residem ainda mantém sua condição periférica e à margem dos benefícios que a outra periferia, de Clichy Batignolles, experimenta.
Bibliografia (1) - MOURA, Miguel. "O euro foi uma armadilha para os pobres”. Artigo publicado no jornal espanhol El Pais em 29/11/2011. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/503902-o-euro-foi-uma-armadilha-para-os-pobres. (2) RIBEIRO, Fernando Pinto. “O fenômeno do Écoquatier na Europa: tendências do discurso sustentável na transformação do território” in Revista eletrônica Scripta Nova. Universidad de Barcelona. Vol XVIII. Num. 486 20 de agosto de 2014. Disponível em http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-486.htm. Publicado em 12/11/2015 no Portal Vitruvius http://www.vitruvius.com.br/revistas/search/arquiteturismo?query=Novos+Bairros+Al%C3%A9m+das+Portas+de+Paris+